01/10/2011
Um diálogo sobre Haiti com o estudante Pierre Dieucel
Entrevistador: Pierre, li algumas de suas reflexões a
respeito do Haiti. Isso me ajudou a melhor entender a situação do país. Estava ouvindo
você também numa entrevista numa das rádios da capital paulistana, falando da
recém-migração haitiana para o Brasil, para usar o título do seu artigo: Os Novos Rostos Da Imigração Para o Brasil , do terremoto, da situação sociopolítica, etc. De tudo
isso, você chegou à conclusão dizendo: “o problema do Haiti é um problema
sociopolítico, agravado pelo maldito terremoto”. Desse problema sociopolítico,
nasceram todos os conflitos presentes no país. Sendo assim, percebo que a
palavra libertação atravessa muito as
suas reflexões. Então, levando em conta tudo isso, percebe-se que você tem uma
grande preocupação para com o seu país e o povo. Ao longo de nossa conversa,
gostaria que o senhor informasse um pouco mais os nossos ouvintes.
Para começar a nossa conversa, poderia explicar um pouco como e a partir de que surgiu essa preocupação?
Pierre: Muitos fatos. Um deles para falar
verdade, eu fui seduzido (risos) por uma corrente teológica. No decorrer de
minha formação, eu fui sempre curioso em saber as coisas. Assim, eu tive
contato pela primeira vez com um livrinho escrito por Leonardo Boff e Clodovis
Boff, ambos irmãos, intitulado: como
fazer Teologia da Libertação. Traduzido em francês Qu´est- ce que la théologie de la libération?. Quando esse livrinho
chegou às mãos, comecei a lê-lo. Eu descobri muita coisa para minha vida
acadêmica. E ainda o livro me ajudou a melhor entender a situação do meu país.
Uma situação marcada por exploração, por falta de estrutura, opressão, etc.
Enfim, as coisas que li, levaram-me a pensar dessa maneira e a entrar numa
relação mais íntima com Deus e a sociedade.
Pois bem, no livro, há dois fatos que
me chamavam a atenção. Primeiro, uma senhora de 40 anos, aparecendo 70, se
aproximou do padre depois de uma missa e dizia: “Padre, comunguei sem ter
confessado antes”. O padre perguntou a
mulher: “Como foi, minha filha?” “Padre, cheguei um pouco tarde, e o senhor já
tinha começado o ofertório. Já há três dias que só tomo água e não tenho comido
nada; estou morta de fome. Quando eu vi o senhor distribuindo a comunhão,
aquele pedacinho de pão branco que é a Eucaristia, eu fui comungar, só para aliviar
a fome com um pouco daquele pão!” Afinal, o padre encheu os olhos de lágrimas,
lembrando-se das palavras de Jesus: “Minha carne (pão) é verdadeira comida...
quem de mim se alimenta, por mim viverá” (Jo 6,55.57) (p.11).
O segundo fato é algo
presenciado por um bispo em plena seca no Nordestino brasileiro. Uma senhora
com três crianças com mais uma ao colo na frente da Catedral. O bispo viu que
estavam desmaiando de fome. A criança ao colo parecia morta. Ele disse:
“Mulher, dê de mamar à criança!” “não posso, senhor Bispo!”, respondeu ela. O
bispo insistia várias vezes e foi a mesma resposta: não. Finalmente, por causa
da insistência do bispo, ela abriu o seio. E estava sangrando. A criancinha
atirou-se com violência ao seio. E sugava sangue.
Com tudo isso, o que
está por trás é a percepção de certas realidades da nossa sociedade. Então, é
por aí que começa a minha preocupação.
Entrevistador: No Haiti, podemos falar de um processo de libertação?
Pierre: Sim podemos, mas falhou devido à falta
de preocupação e de compromisso.
Sim. Uma das figuras
centrais desse processo era o ex-padre religioso Dr. Jean-Bertrand Aristide,
que mais tarde foi escolhido e eleito presidente pelo povo. A grande parte do
trabalho desse processo pela libertação, já tinha sido feito por pessoas antes
de Jean-Bertrand Aristide. Pessoas como: padre Antoine Adrien e seus
companheiros, e padre Jean-Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Padre Gérard Jean-Juste depois do segundo
exílio do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, acabou sendo preso, liberado e
logo acabou morrendo. No conjunto, eles tinham desenvolvido uma visão teológica
libertadora carregada de esperanças. Dessa maneira, acompanhavam o povo nas
suas lutas denunciando as estruturas do pecado no qual o povo se encontrava (e
continua se encontrando).
Por outro lado, não. Não é porque esse processo pela
libertação está paralisado por falta de compromisso. Hoje em dia, poucos se
dedicam para com isso. Assim, o povo continua na miséria e os políticos
continuam afundando o povo. Por isso, acho que é preciso que Haiti volte a redescobrir Medellín e Puebla.
Entrevistador: Quando você fala de
“libertação” do povo haitiano, que você quer dizer com isso?
Sr. Pierre: Gostaria de começar pelo verbo.
Libertar é livrar-se
de uma situação que você está preso ou amarrado. Por exemplo: da fome, da miséria, da
injustiça, do desemprego, da exploração, etc. Libertar-se, pois, é sair-se
dessas situações para se aliviar. Se a gente se refere ao documento da
Conferência de Medellín, certamente está presente uma leitura feita a partir
das realidades latino-americanas, a evangelização, algumas medidas tomadas,
certas pistas como guias, etc. Essa leitura é feita à luz da Bíblia. Diante de
tudo isso o que foi pedido ou elaborado? Com certeza é a libertação, opção pelos pobres. Em “Puebla” foi a libertação
integral e a opção preferencial pelos pobres.
Assim sendo, podemos
dizer que na América Latina num certo sentido a palavra salvação é libertação.
Salvar num certo sentido é sair de uma situação (perigosa) para outra (salvar
tem vários sentidos. Por exemplo, salvar alguém da fome, da injustiça, da
opressão, etc.).
Podemos fazer-nos
duas perguntas a respeito de libertar e salvar para problematizar ao nosso
diálogo. A saber, O Êxodo, onde temos o relato de um povo que sofria no Egito
sobre o peso de um sistema. Depois de anos sofrendo, conseguiram a libertação
por meio de Moisés. A segunda fonte está na própria vida de Jesus Cristo que
teve a tarefa de libertar o ser humano carregado de sofrimento. Se, pois, o
Filho nos liberta e, por que uma Teologia de Libertação? Para melhor entender,
se Deus usa Moisés para libertar aquele povo que sofria e, logo mandou o seu
próprio Filho para nos libertar e, de onde vem essa Teologia que pretende
libertar?
Voltando ao assunto, a palavra
“libertação” tem vários sentidos e significados. Estou querendo falar a
libertação socioeconômica (dependência) como prego que prega o povo; e
teológica. Teológica é porque o lugar da
libertação é a Igreja com a garantia de possuir a verdadeira revelação. No
Brasil, por exemplo, essa teologia deu uma grande contribuição integral em
todos os sentidos. Isto é, o resultado
de vários grupos pastorais, sindicais, movimentos, etc, procurando espaços,
reclamando os seus direitos e os seus deveres. Foi assim a partir daquelas
situações contra as quais que surgiram esses grupos bebendo na fonte da vida, a
Palavra de Deus.
A sociedade brasileira
vai mudando e crescendo muito nesses últimos anos (a política, a economia, a
sociedade, a sustentabilidade, os sistemas da saúde, etc.). É um crescimento em
todos os níveis. Nessa mudança, a Igreja tem a maior participação ou
contribuição. Então, é disso que precisamos no Haiti: uma libertação integral.
Assim, o pobre terá vida em abundância. O pobre é o explorado, o excluído, o
oprimido, o atingido, o jovem largado sem nada, o faminto, aquele sem acesso a
saúde, água potável, sem moradia, sem educação etc. É enfim, um carente
miserável sem condições de vida. Por
isso, acho que é necessário e preciso que surjam no Haiti teólogos, biblistas,
historiadores, sociólogos, leigos e outros, comprometidos para traçar o caminho
para com o povo.
Entrevistador: você acha que é um trabalho fácil, pregar o Evangelho da libertação no Haiti?
Pierre: Como já mencionei, acima, o trabalho
já foi feito por alguns leigos e padres engajados. Mataram alguns deles. Muitos
foram perseguidos. Outros foram obrigados a deixar o país. O objetivo era
acabar com a ditadura militar e a restauração de um país de liberdade e de
direito para todos. Direito ao trabalho, todo mundo tem? Direito à
universidade, todo mundo tem? Pois bem, a meu ver, “o povo pobre” não foi
colocado no projeto, como principal preocupação. A principal preocupação era
libertar o país contra a ditadura. Podia ser sim, que se tratava de uma
preocupação para com os pobres, mas uma preocupação secundária.
O trabalho daqueles
padres e leigos engajados foi certo.
Porém, há uma descontinuidade. Deus não gostaria de ver o seu filho
sofrendo de dor, miséria, fome, injustiça, exploração, opressão, maldade etc.
Por isso, é preciso uma pastoral fortalecida
para motivar e conscientizar o compromisso político e social dos nossos
homens políticos haitianos para a criação de uma sociedade justa, onde que há:
ordem, disciplina, serviços para todos, segurança, trabalhos, saúde para todos,
justiça para todos etc. Não podemos aceitar essas injustiças de um povo que
grita, sofre, chora, canta, desespera e até que morre em condições
inaceitáveis. Temos que dar vida ao Evangelho que pregamos com muita fidelidade
e compromisso, denunciando as raízes desses males. A pregação de Cristo é para
proclamar a libertação dos oprimidos, ser voz daqueles sem voz.
Precisamos,
pois, no Haiti uma evangelização e uma pastoral libertadora que liberte,
humanize, promova e conscientize o homem haitiano, sobretudo o homem político
haitiano.
Para
a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria,
mas, sobretudo um fundamento e uma motivação para a ação (Centésimo Annus, 57). Então, nesse sentido é papel dos leigos,
padres, missionários, movimentos, religioso, sindicais, todos a darem vida ao
Evangelho de Cristo.
Entrevistador: Houve e há no Haiti Teologia da Libertação?
Não
há um lugar que não está a Teologia da Libertação. Está até na Europa, ver no
Haiti. Não tenho conhecimento sobre a teologia que se ensina no Haiti. Acredito
que é uma teologia dogmática, moral, espiritual, bíblica, etc.
Na
década de 1980 se não me engano, havia a presença da Teologia da Libertação
feita por alguns padres haitianos. Parece-me que não aplica essa teologia no
Haiti.
Entrevistador: Houve no Haiti, depois do terremoto, como de sempre, uma crise política nas últimas eleições presidenciais. Tudo já foi resolvido pela ONU. O novo presidente já assumiu a sua posse. Um dos seus programas é o retorno com o Exército Haitiano. Que você acha?
Sr.
Pierre:
O retorno do Exército Haitiano é preciso e necessário. O retorno do Exército
Haitiano será bem vindo a meu ver. Agora me diz uma coisa, se houvesse o
Exército Haitiano, será que haveria tantos militares, menos de 19 países,
pisando o solo desse pequeno país caribenho? Até poderia ser, mas não do jeito
que é imposto. Acho que sim, o retorno do Exército Haitiano seria bom, mas será
que vão (os que manipulam Haiti) votar a favor desse retorno? Nesse contexto
que se encontra esse novo governo, duvido que isso vai acontecer no momento.
Digo isso porque é um governo que vai ser dirigido por........ e tem que se
submeter às ordens da Comunidade Internacional se quer permanecer. Desse fato,
Haiti é o único país caribenho que é dirigido. Isso é por causa dos políticos
haitianos que não se entendem. Eles se entendem melhor numa luta política do
que num diálogo político. Assim entendido, os políticos haitianos são os
verdadeiros responsáveis de tudo que se passa no Haiti.
Quanto
à crise das eleições presidenciais, trata-se ali de um jogo político do governo
que estava no comando do país e das Forças Ocupantes no país. Com essas poucas
palavras, dá para entender a crise e até dizer que os partidários do candidato
perdedor e ganhador no segundo turno, tinham razão por não terem aceito aquela
demagogia.
Uma
coisa que me vem agora na cabeça, pergunto-me porque quando os outros países da
América Latina, por exemplo, como o Brasil, e outros do Caribe, organizam
eleições, porque não há a presença da Comunidade Internacional, ou seja, uma
presença que vai impor suas regras? Não entendo isso no caso do Haiti. Essa
presença até pode ser, às vezes, significativa, mas há algo por trás.
Entrevistador: O ex- presidente Dr. Jean-Bertrand Aristide, a seu ver, teve razão de excluir o Exército Haitiano?
Pierre: De um lado, totalmente sim. Foi o
Exército que o derrubou do poder no primeiro Golpe de Estado. Então, no seu
retorno, talvez como preço a pagar, ou seja, por medo de não acontecer uma vez
mais, eliminou o Exército de seu projeto. Mas não podemos esquecer que muitos
que faziam parte do Exército, foram incorporados na Polícia Nacional.
De outro lado,
Jean-Bertrand Aristide poderia aplicar outras estratégias de não excluir o
Exército. Bom! Talvez, a exclusão do Exército pelo Dr. Jean-Bertrand Aristide,
fosse o preço a pagar por ter sido responsável pelo Golpe de Estado.
Entrevistador: Se fosse você que estava reorganizando o Exército haitiano, como o teria feito?
Pierre: Eu convocaria jovens a partir de 18 –
25 anos, e alguns experientes da Polícia Nacional. O Exército seria uma das instituições
mais rígida com leis rigorosas. Seria, enfim, um Exército com uma nova cara.
Esses elementos não são suficientes. Mas como início, seria tal forma.
Entrevistador: você está contra as Forças Armadas que estão no Haiti?
Pierre: De 2004 até..., houve a razão de as
Forças Armadas estarem no Haiti. O conflito sociopolítico que houve lá, não
demorou por muito tempo. Isso é para ver que não precisavam demorar tanto lá
sobre pretexto de segurança. Ainda mais, depois do terremoto, as Forças Armadas
foram se aumentando. E até agora, não se sabe até quando vão deixar o país.
Enfim, não podemos negar que se trata de uma ocupação militar. Acho que vale a
pena um pouco, essa presença. Que trabalho que fizeram e continuam fazendo lá?
Nesse contexto, diz para mim: é melhor dar o peixe ou ensinar a pescar ou os
dois?
Entrevistador: Para finalizar a nossa conversa a respeito do Haiti, você gostaria de acrescentar alguns outros elementos?
Pierre: A preocupação desse presente governo
(Michel Martelly) deveria de ser, primeiro, para com as vítimas do terremoto,
construções e reconstruções, reabilitação, condições de vida, construir os
órgãos públicos, educação, investimento,saúde, justiça, empregos, etc.
Deveria de ser em
segundo, a reorganização das estruturas do Haiti começando pela base: ordem e
disciplina. Um sistema de cadastramento de todos os cidadãos haitianos (para
ter o controle dos que saem e retornam), etc, etc, etc.
Por último, a
modernização do país.
Et tant d´autres choses à faire dans le pays. Par exemplo, le renforcement du dialoge
national, etc, etc, etc.
Tendo tudo montado e
preparado, o retorno do Exército Haitiano seria bem vindo; porém, poderia ser
depois de implantar essas estruturas no país. Desse fato, o retorno do Exército
seria “elemento secundário”. O elemento primário, de fato, deveria de ser a
“preocupação para com as vítimas do terremoto, e a criação de estruturas” (sem
esquecer a educação e outras coisas básicas, etc). Feito tudo isso, agora sim,
bem vindo ao Exército Haitiano!
Enquanto os
responsáveis estão trabalhando sobre o estabelecimento de novas regras, normas,
medidas, lugares, treinamento, instruções etc. a Polícia Nacional poderia ser
responsável para manter ordem no país.
Que é que acontece é
que a maioria de nossos políticos não sabe trabalhar e nem ser criativo. O
governo montado sobre nome “dos pobres” e acaba sendo “Governo de um grupinho
para outro grupo”. A destinação dos fundos ou recursos não são bem repartidos.
Poucos têm acesso, e a massa pobre fica sem nada. Então, os responsáveis
deveriam criar medidas visam a ter o controle da situação. A situação em vez de
melhorar, piora. Quando tem sinal de melhora, acontecem outros problemas. Tal
foi o caso do governo do Sr. Dr. Jean-Bertrand Aristide. Havia uma melhora, e não
demorou em ser derrubado. Sendo assim, é sempre um recomeço.
E por outro lado, a
política de lá está atravessada por demasiada ideologia. Enquanto isso, quem
paga, são os pobres, os necessitados, os famintos. Em geral, todo o povo (os
pobres e famintos). Então, é dentro desse contexto político-social-econômico
que o país se encontra.