Pierre Dieucel
domingo, 16 de dezembro de 2012
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
Um diálogo sobre Haiti com Pierre Dieucel
01/10/2011
Um diálogo sobre Haiti com o estudante Pierre Dieucel
Entrevistador: Pierre, li algumas de suas reflexões a
respeito do Haiti. Isso me ajudou a melhor entender a situação do país. Estava ouvindo
você também numa entrevista numa das rádios da capital paulistana, falando da
recém-migração haitiana para o Brasil, para usar o título do seu artigo: Os Novos Rostos Da Imigração Para o Brasil , do terremoto, da situação sociopolítica, etc. De tudo
isso, você chegou à conclusão dizendo: “o problema do Haiti é um problema
sociopolítico, agravado pelo maldito terremoto”. Desse problema sociopolítico,
nasceram todos os conflitos presentes no país. Sendo assim, percebo que a
palavra libertação atravessa muito as
suas reflexões. Então, levando em conta tudo isso, percebe-se que você tem uma
grande preocupação para com o seu país e o povo. Ao longo de nossa conversa,
gostaria que o senhor informasse um pouco mais os nossos ouvintes.
Para começar a nossa conversa, poderia explicar um pouco como e a partir de que surgiu essa preocupação?
Pierre: Muitos fatos. Um deles para falar
verdade, eu fui seduzido (risos) por uma corrente teológica. No decorrer de
minha formação, eu fui sempre curioso em saber as coisas. Assim, eu tive
contato pela primeira vez com um livrinho escrito por Leonardo Boff e Clodovis
Boff, ambos irmãos, intitulado: como
fazer Teologia da Libertação. Traduzido em francês Qu´est- ce que la théologie de la libération?. Quando esse livrinho
chegou às mãos, comecei a lê-lo. Eu descobri muita coisa para minha vida
acadêmica. E ainda o livro me ajudou a melhor entender a situação do meu país.
Uma situação marcada por exploração, por falta de estrutura, opressão, etc.
Enfim, as coisas que li, levaram-me a pensar dessa maneira e a entrar numa
relação mais íntima com Deus e a sociedade.
Pois bem, no livro, há dois fatos que
me chamavam a atenção. Primeiro, uma senhora de 40 anos, aparecendo 70, se
aproximou do padre depois de uma missa e dizia: “Padre, comunguei sem ter
confessado antes”. O padre perguntou a
mulher: “Como foi, minha filha?” “Padre, cheguei um pouco tarde, e o senhor já
tinha começado o ofertório. Já há três dias que só tomo água e não tenho comido
nada; estou morta de fome. Quando eu vi o senhor distribuindo a comunhão,
aquele pedacinho de pão branco que é a Eucaristia, eu fui comungar, só para aliviar
a fome com um pouco daquele pão!” Afinal, o padre encheu os olhos de lágrimas,
lembrando-se das palavras de Jesus: “Minha carne (pão) é verdadeira comida...
quem de mim se alimenta, por mim viverá” (Jo 6,55.57) (p.11).
O segundo fato é algo
presenciado por um bispo em plena seca no Nordestino brasileiro. Uma senhora
com três crianças com mais uma ao colo na frente da Catedral. O bispo viu que
estavam desmaiando de fome. A criança ao colo parecia morta. Ele disse:
“Mulher, dê de mamar à criança!” “não posso, senhor Bispo!”, respondeu ela. O
bispo insistia várias vezes e foi a mesma resposta: não. Finalmente, por causa
da insistência do bispo, ela abriu o seio. E estava sangrando. A criancinha
atirou-se com violência ao seio. E sugava sangue.
Com tudo isso, o que
está por trás é a percepção de certas realidades da nossa sociedade. Então, é
por aí que começa a minha preocupação.
Entrevistador: No Haiti, podemos falar de um processo de libertação?
Pierre: Sim podemos, mas falhou devido à falta
de preocupação e de compromisso.
Sim. Uma das figuras
centrais desse processo era o ex-padre religioso Dr. Jean-Bertrand Aristide,
que mais tarde foi escolhido e eleito presidente pelo povo. A grande parte do
trabalho desse processo pela libertação, já tinha sido feito por pessoas antes
de Jean-Bertrand Aristide. Pessoas como: padre Antoine Adrien e seus
companheiros, e padre Jean-Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Padre Gérard Jean-Juste depois do segundo
exílio do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, acabou sendo preso, liberado e
logo acabou morrendo. No conjunto, eles tinham desenvolvido uma visão teológica
libertadora carregada de esperanças. Dessa maneira, acompanhavam o povo nas
suas lutas denunciando as estruturas do pecado no qual o povo se encontrava (e
continua se encontrando).
Por outro lado, não. Não é porque esse processo pela
libertação está paralisado por falta de compromisso. Hoje em dia, poucos se
dedicam para com isso. Assim, o povo continua na miséria e os políticos
continuam afundando o povo. Por isso, acho que é preciso que Haiti volte a redescobrir Medellín e Puebla.
Entrevistador: Quando você fala de
“libertação” do povo haitiano, que você quer dizer com isso?
Sr. Pierre: Gostaria de começar pelo verbo.
Libertar é livrar-se
de uma situação que você está preso ou amarrado. Por exemplo: da fome, da miséria, da
injustiça, do desemprego, da exploração, etc. Libertar-se, pois, é sair-se
dessas situações para se aliviar. Se a gente se refere ao documento da
Conferência de Medellín, certamente está presente uma leitura feita a partir
das realidades latino-americanas, a evangelização, algumas medidas tomadas,
certas pistas como guias, etc. Essa leitura é feita à luz da Bíblia. Diante de
tudo isso o que foi pedido ou elaborado? Com certeza é a libertação, opção pelos pobres. Em “Puebla” foi a libertação
integral e a opção preferencial pelos pobres.
Assim sendo, podemos
dizer que na América Latina num certo sentido a palavra salvação é libertação.
Salvar num certo sentido é sair de uma situação (perigosa) para outra (salvar
tem vários sentidos. Por exemplo, salvar alguém da fome, da injustiça, da
opressão, etc.).
Podemos fazer-nos
duas perguntas a respeito de libertar e salvar para problematizar ao nosso
diálogo. A saber, O Êxodo, onde temos o relato de um povo que sofria no Egito
sobre o peso de um sistema. Depois de anos sofrendo, conseguiram a libertação
por meio de Moisés. A segunda fonte está na própria vida de Jesus Cristo que
teve a tarefa de libertar o ser humano carregado de sofrimento. Se, pois, o
Filho nos liberta e, por que uma Teologia de Libertação? Para melhor entender,
se Deus usa Moisés para libertar aquele povo que sofria e, logo mandou o seu
próprio Filho para nos libertar e, de onde vem essa Teologia que pretende
libertar?
Voltando ao assunto, a palavra
“libertação” tem vários sentidos e significados. Estou querendo falar a
libertação socioeconômica (dependência) como prego que prega o povo; e
teológica. Teológica é porque o lugar da
libertação é a Igreja com a garantia de possuir a verdadeira revelação. No
Brasil, por exemplo, essa teologia deu uma grande contribuição integral em
todos os sentidos. Isto é, o resultado
de vários grupos pastorais, sindicais, movimentos, etc, procurando espaços,
reclamando os seus direitos e os seus deveres. Foi assim a partir daquelas
situações contra as quais que surgiram esses grupos bebendo na fonte da vida, a
Palavra de Deus.
A sociedade brasileira
vai mudando e crescendo muito nesses últimos anos (a política, a economia, a
sociedade, a sustentabilidade, os sistemas da saúde, etc.). É um crescimento em
todos os níveis. Nessa mudança, a Igreja tem a maior participação ou
contribuição. Então, é disso que precisamos no Haiti: uma libertação integral.
Assim, o pobre terá vida em abundância. O pobre é o explorado, o excluído, o
oprimido, o atingido, o jovem largado sem nada, o faminto, aquele sem acesso a
saúde, água potável, sem moradia, sem educação etc. É enfim, um carente
miserável sem condições de vida. Por
isso, acho que é necessário e preciso que surjam no Haiti teólogos, biblistas,
historiadores, sociólogos, leigos e outros, comprometidos para traçar o caminho
para com o povo.
Entrevistador: você acha que é um trabalho fácil, pregar o Evangelho da libertação no Haiti?
Pierre: Como já mencionei, acima, o trabalho
já foi feito por alguns leigos e padres engajados. Mataram alguns deles. Muitos
foram perseguidos. Outros foram obrigados a deixar o país. O objetivo era
acabar com a ditadura militar e a restauração de um país de liberdade e de
direito para todos. Direito ao trabalho, todo mundo tem? Direito à
universidade, todo mundo tem? Pois bem, a meu ver, “o povo pobre” não foi
colocado no projeto, como principal preocupação. A principal preocupação era
libertar o país contra a ditadura. Podia ser sim, que se tratava de uma
preocupação para com os pobres, mas uma preocupação secundária.
O trabalho daqueles
padres e leigos engajados foi certo.
Porém, há uma descontinuidade. Deus não gostaria de ver o seu filho
sofrendo de dor, miséria, fome, injustiça, exploração, opressão, maldade etc.
Por isso, é preciso uma pastoral fortalecida
para motivar e conscientizar o compromisso político e social dos nossos
homens políticos haitianos para a criação de uma sociedade justa, onde que há:
ordem, disciplina, serviços para todos, segurança, trabalhos, saúde para todos,
justiça para todos etc. Não podemos aceitar essas injustiças de um povo que
grita, sofre, chora, canta, desespera e até que morre em condições
inaceitáveis. Temos que dar vida ao Evangelho que pregamos com muita fidelidade
e compromisso, denunciando as raízes desses males. A pregação de Cristo é para
proclamar a libertação dos oprimidos, ser voz daqueles sem voz.
Precisamos,
pois, no Haiti uma evangelização e uma pastoral libertadora que liberte,
humanize, promova e conscientize o homem haitiano, sobretudo o homem político
haitiano.
Para
a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria,
mas, sobretudo um fundamento e uma motivação para a ação (Centésimo Annus, 57). Então, nesse sentido é papel dos leigos,
padres, missionários, movimentos, religioso, sindicais, todos a darem vida ao
Evangelho de Cristo.
Entrevistador: Houve e há no Haiti Teologia da Libertação?
Não
há um lugar que não está a Teologia da Libertação. Está até na Europa, ver no
Haiti. Não tenho conhecimento sobre a teologia que se ensina no Haiti. Acredito
que é uma teologia dogmática, moral, espiritual, bíblica, etc.
Na
década de 1980 se não me engano, havia a presença da Teologia da Libertação
feita por alguns padres haitianos. Parece-me que não aplica essa teologia no
Haiti.
Entrevistador: Houve no Haiti, depois do terremoto, como de sempre, uma crise política nas últimas eleições presidenciais. Tudo já foi resolvido pela ONU. O novo presidente já assumiu a sua posse. Um dos seus programas é o retorno com o Exército Haitiano. Que você acha?
Sr.
Pierre:
O retorno do Exército Haitiano é preciso e necessário. O retorno do Exército
Haitiano será bem vindo a meu ver. Agora me diz uma coisa, se houvesse o
Exército Haitiano, será que haveria tantos militares, menos de 19 países,
pisando o solo desse pequeno país caribenho? Até poderia ser, mas não do jeito
que é imposto. Acho que sim, o retorno do Exército Haitiano seria bom, mas será
que vão (os que manipulam Haiti) votar a favor desse retorno? Nesse contexto
que se encontra esse novo governo, duvido que isso vai acontecer no momento.
Digo isso porque é um governo que vai ser dirigido por........ e tem que se
submeter às ordens da Comunidade Internacional se quer permanecer. Desse fato,
Haiti é o único país caribenho que é dirigido. Isso é por causa dos políticos
haitianos que não se entendem. Eles se entendem melhor numa luta política do
que num diálogo político. Assim entendido, os políticos haitianos são os
verdadeiros responsáveis de tudo que se passa no Haiti.
Quanto
à crise das eleições presidenciais, trata-se ali de um jogo político do governo
que estava no comando do país e das Forças Ocupantes no país. Com essas poucas
palavras, dá para entender a crise e até dizer que os partidários do candidato
perdedor e ganhador no segundo turno, tinham razão por não terem aceito aquela
demagogia.
Uma
coisa que me vem agora na cabeça, pergunto-me porque quando os outros países da
América Latina, por exemplo, como o Brasil, e outros do Caribe, organizam
eleições, porque não há a presença da Comunidade Internacional, ou seja, uma
presença que vai impor suas regras? Não entendo isso no caso do Haiti. Essa
presença até pode ser, às vezes, significativa, mas há algo por trás.
Entrevistador: O ex- presidente Dr. Jean-Bertrand Aristide, a seu ver, teve razão de excluir o Exército Haitiano?
Pierre: De um lado, totalmente sim. Foi o
Exército que o derrubou do poder no primeiro Golpe de Estado. Então, no seu
retorno, talvez como preço a pagar, ou seja, por medo de não acontecer uma vez
mais, eliminou o Exército de seu projeto. Mas não podemos esquecer que muitos
que faziam parte do Exército, foram incorporados na Polícia Nacional.
De outro lado,
Jean-Bertrand Aristide poderia aplicar outras estratégias de não excluir o
Exército. Bom! Talvez, a exclusão do Exército pelo Dr. Jean-Bertrand Aristide,
fosse o preço a pagar por ter sido responsável pelo Golpe de Estado.
Entrevistador: Se fosse você que estava reorganizando o Exército haitiano, como o teria feito?
Pierre: Eu convocaria jovens a partir de 18 –
25 anos, e alguns experientes da Polícia Nacional. O Exército seria uma das instituições
mais rígida com leis rigorosas. Seria, enfim, um Exército com uma nova cara.
Esses elementos não são suficientes. Mas como início, seria tal forma.
Entrevistador: você está contra as Forças Armadas que estão no Haiti?
Pierre: De 2004 até..., houve a razão de as
Forças Armadas estarem no Haiti. O conflito sociopolítico que houve lá, não
demorou por muito tempo. Isso é para ver que não precisavam demorar tanto lá
sobre pretexto de segurança. Ainda mais, depois do terremoto, as Forças Armadas
foram se aumentando. E até agora, não se sabe até quando vão deixar o país.
Enfim, não podemos negar que se trata de uma ocupação militar. Acho que vale a
pena um pouco, essa presença. Que trabalho que fizeram e continuam fazendo lá?
Nesse contexto, diz para mim: é melhor dar o peixe ou ensinar a pescar ou os
dois?
Entrevistador: Para finalizar a nossa conversa a respeito do Haiti, você gostaria de acrescentar alguns outros elementos?
Pierre: A preocupação desse presente governo
(Michel Martelly) deveria de ser, primeiro, para com as vítimas do terremoto,
construções e reconstruções, reabilitação, condições de vida, construir os
órgãos públicos, educação, investimento,saúde, justiça, empregos, etc.
Deveria de ser em
segundo, a reorganização das estruturas do Haiti começando pela base: ordem e
disciplina. Um sistema de cadastramento de todos os cidadãos haitianos (para
ter o controle dos que saem e retornam), etc, etc, etc.
Por último, a
modernização do país.
Et tant d´autres choses à faire dans le pays. Par exemplo, le renforcement du dialoge
national, etc, etc, etc.
Tendo tudo montado e
preparado, o retorno do Exército Haitiano seria bem vindo; porém, poderia ser
depois de implantar essas estruturas no país. Desse fato, o retorno do Exército
seria “elemento secundário”. O elemento primário, de fato, deveria de ser a
“preocupação para com as vítimas do terremoto, e a criação de estruturas” (sem
esquecer a educação e outras coisas básicas, etc). Feito tudo isso, agora sim,
bem vindo ao Exército Haitiano!
Enquanto os
responsáveis estão trabalhando sobre o estabelecimento de novas regras, normas,
medidas, lugares, treinamento, instruções etc. a Polícia Nacional poderia ser
responsável para manter ordem no país.
Que é que acontece é
que a maioria de nossos políticos não sabe trabalhar e nem ser criativo. O
governo montado sobre nome “dos pobres” e acaba sendo “Governo de um grupinho
para outro grupo”. A destinação dos fundos ou recursos não são bem repartidos.
Poucos têm acesso, e a massa pobre fica sem nada. Então, os responsáveis
deveriam criar medidas visam a ter o controle da situação. A situação em vez de
melhorar, piora. Quando tem sinal de melhora, acontecem outros problemas. Tal
foi o caso do governo do Sr. Dr. Jean-Bertrand Aristide. Havia uma melhora, e não
demorou em ser derrubado. Sendo assim, é sempre um recomeço.
E por outro lado, a
política de lá está atravessada por demasiada ideologia. Enquanto isso, quem
paga, são os pobres, os necessitados, os famintos. Em geral, todo o povo (os
pobres e famintos). Então, é dentro desse contexto político-social-econômico
que o país se encontra.
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Haiti precisa redescobrir Medellín e Puebla
Haiti precisa redescobrir Medellín
e Puebla
Nós
somos um povo ferido que chora. O nosso choro se multiplica em grandes lágrimas
agravadas pelo terremoto. Os nossos políticos se preocupam em defender seus próprios
interesses. Procuram fazer da política um meio de enriquecer-se, um meio de
atender seus grupos, etc. Sendo assim, a política se torna um meio de enriquecer
rápido. Enquanto isso, o povo continua derramando lágrimas e as suas
necessidades não são atendidas. Quem secará as lágrimas do nosso povo?
É
inacreditável, mas é a verdade que o Haiti é o país quem fez nascer as palavras libertação e liberdade para o continente latino-americano. Mas sua história
continua marcada por opressão, injustiça, dominação estrangeira, desigualdade, empobrecimento,
corrupção políticas, etc. O país desde 2004 está passando por um processo de
ocupação militar sob a ordem da ONU, chefiado pelo Brasil. Depois do terrível terremoto,
aumentou o número dos militares. O que machuca o povo haitiano é ver toda a sua
terra, o mar e o céu, tudo ocupado militarmente. O país está sob o controle da
Comunidade Internacional. Inclusive para organizar as eleições é sempre a
Comunidade Internacional quem decide. Isso não é uma “neocolonização”?
Como
falar, nesse sentido, de um país independente, se está privado de sua autonomia
política e econômica? Isso não é uma injustiça externa?
A
situação em que vive o Haiti é uma situação profundamente marcada pelo pecado
da injustiça e da opressão. O caminho para o êxodo desta situação desumana e
anticristã para uma situação humana e cristã é o da evangelização libertadora; uma
libertação transformadora das estruturas nas quais o povo haitiano vive, onde ricos
se tornam cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.
Para
que a Igreja e a sociedade haitiana voltem-se para os pobres e
para que essa opção pelos pobres seja realmente evidenciada, é preciso
anunciar, denunciar e convocar. Isto é, anunciar propostas alternativas,
denunciar as amargas estruturas de injustiça que oprimem o povo e convocar este
povo à participação em comunhão em busca de libertação. Falando especificamente
da missão da Igreja e do cristão, tanto no Haiti quanto na América Latina,
significa comprometer-se com a mudança da realidade, a partir da fé. Este
compromisso envolve todas as esferas da realidade: dimensões econômicas,
sociais, políticas, culturais, religiosas, etc.
Nesse
sentido, é preciso no Haiti uma teologia e uma prática concretas que se voltem
à realidade do povo. Essa teologia precisa utilizar o método indutivo, isto
é, partir da realidade. Para a cristologia significará, sobretudo, procurar na
história de Jesus e em sua mensagem evangélica a orientação para responder aos
problemas vitais que desafiam a sociedade haitiana.
Este
é um caminho de libertação. A
libertação integral. Reler e aplicar as Conferências de Medellín e Puebla à luz
do Evangelho de Jesus Cristo Salvador é uma sugestão prática. Elas nos
perguntarão se estamos optando pelos pobres. O Haiti, nesse sentido, precisa de
teólogos, de antropólogos, de historiadores, de biblistas, de sociólogos, etc., que o ajudem
a caminhar na direção da justiça e da paz.
O
povo haitiano precisa dessas pessoas que caminhem com ele e lhe ensinem que
está oprimido, que tem de libertar-se, indicando-lhe os instrumentos da
libertação.
É
necessário uma tomada de consciência, compromisso, e participação em comunhão,
tendo em vista a libertação na busca de um Haiti melhor, onde haja condições de
vida digna para todos.
Pierre Dieucel
Estudante religioso
Scalabriniano
sábado, 21 de abril de 2012
A festa da Bandeira Haitiana em São Paulo
Le 18 mai est célébré le Jour du Drapeau Haïtien. Nous
la communauté haïtienne au Brésil, espécialemente en São Paulo, pour certaines
raisons, la célébration aura lieu le 20 mai.
Après la
célébration, il y aura un déjeuner et aussi des présentations et danses
typiques (konpa et carnaval haitien)
18
de maio é comemorado Dia da Bandeira do Haiti. Nós da comunidade haitiana no
Brasil, em São Paulo especialmente, por algum motivo, a celebração será
realizada 20 de maio.
Após a celebração, haverá um almoço, certas apresentações
e danças típicas (Konpa haitiano e
Carnaval)
Local:
Igreja Nossa Senhora da Paz. Rua Glicério, 225, Liberdade, SP
Hora:
11: 30 a.m
Vem
celebrar com os migrantes haitianos em São Paulo!
Qualquer dúvida, deixa sua postagem!
segunda-feira, 5 de março de 2012
50 anos do Vaticano II
RESUMO: O Concílio Vaticano II, anunciado pelo Papa
João XXIII a 25 de janeiro de 1959 e realizado em quatro sessões consecutivas
no outono europeu de 1962 a 1965, foi precedido de uma etapa preparatória, em
dois momentos: o da ampla consulta endereçada aos bispos de todo o mundo, aos
dicastérios da Cúria Romana, às faculdades de teologia e universidades
católicas e o da constituição das comissões preparatórias e dos secretariados.
Essas duas fases são aqui examinadas, dedicando-se especial atenção à participação
e contribuição da Igreja do Brasil, ao papel inovador do Secretariado para a
União dos Cristãos, aos percalços na preparação e à figura de João XXIII.
PALAVRAS CHAVES: Concílio, Vaticano II, João XXIII,
Secretariado para a União dos Cristãos, Aggiornamento, Pastoralidade,
Ecumenismo, Meios de Comunicação Social, Laicato, Mulheres.
O CONCÍLIO VATICANO II: ETAPA PREPARATÓRIA
INTRODUÇÃO
Naquela manhã de inverno fria, mas de sol radiante, de 25 de janeiro de
1959, o Papa João XXIII celebrou na Patriarcal Basílica de São Paulo Fora dos
Muros a missa da festa da conversão do apóstolo Paulo e de encerramento da
Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Após a missa, surpreendeu o mundo e
os cardeais reunidos no vizinho mosteiro beneditino, com o anúncio da
convocação de um Concílio Ecumênico.
Roncalli não havia completado ainda os primeiros cem dias do seu
pontificado, iniciado com sua escolha a 28 de outubro de 1958, em substituição
a Pio XII, que reinara de março de 1939 a 9 de outubro de 1958.
Os observadores supunham que o pontificado do Papa João, filho de
camponeses nascido no vilarejo de Soto il Monte, eleito aos 78 anos de idade,
seria apenas de transição e que pouca coisa mudaria, à espera de um outro Papa
mais jovem que pudesse empreender a tão esperada reforma e adaptação da Igreja
Católica ao mundo moderno.
O anúncio do Concílio provocou por todo o mundo excitação e grandes
indagações. Deixou perplexos os cardeais presentes, mas levantou na opinião
pública mundial, católica e leiga, uma imediata onda de esperança e otimismo
pelo seu anunciado propósito de buscar, num mundo dilacerado por divisões
políticas e religiosas, a unidade dos cristãos e, num horizonte mais amplo, a
unidade de toda a família humana.
A discreta e lacônica nota publicada na primeira página do jornal do
Vaticano, o Osservatore Romano, registrava: “O Concílio ecumênico,
segundo o pensamento do Santo Padre não somente tende à edificação do povo
cristão, mas também quer ser um convite às comunidades separadas para a busca
da unidade pela qual hoje em dia tantas almas anseiam em todos os pontos da
terra”[1].
O propósito ecumênico do Concílio foi o que, talvez,
mais chamou a atenção da opinião mundial e capturou a sua imaginação.
Mas, afinal, por que tanta
perplexidade e incerteza e por que tantas esperanças suscitadas?
1.
“AGGIORNAMENTO”, PALAVRA MÁGICA
No imaginário da opinião pública, no decorrer da preparação e da
realização do Concílio, uma palavra acabou paradoxalmente caracterizando a
proposta de João XXIII: “aggiornamento”. Esta palavra italiana que significa
“colocar-se em dia”, “atualizar-se” acabou entrando para o vocabulário de
muitas outras línguas ao redor do mundo. Paradoxalmente, porque muita coisa em
João XXIII transpirava o mundo católico tradicional. Novo mesmo, eram muitas de
suas atitudes, em que combinava coragem com bondade, gestos audaciosos, sob uma
forma, o mais das vezes antiga e pacata.
Para alguns, com o anúncio do Concílio, a Igreja Católica estava saindo
da “segurança das trincheiras e baluartes em que se havia fechado, para o
fascínio da busca”. Outros sentiam que, com a convocação, tornava-se viva e
atual a esperança do evangelho e seu otimismo.
João XXIII descrevia sua decisão como “um gesto de tranqüila audácia”
que transparecia em suas palavras aos cardeais: “Pronuncio perante vós, por
certo tremendo um pouco de emoção, mas ao mesmo tempo com humilde resolução de
propósito, o nome e a proposta de duas celebrações: um Sínodo diocesano para a
Urbe (a cidade de Roma) e um Concílio geral para a Igreja universal”[2].
Muitos teólogos, especialmente os da escola romana consideravam que,
depois do Vaticano I, que concentrara tanto poder nas mãos do Romano Pontífice,
novos concílios seriam dispensáveis.
2.
PAPA JOÃO: BISPO DE ROMA E PASTOR UNIVERSAL
Com o Sínodo diocesano, o Papa revelava sua preocupação com a Igreja
particular de Roma, da qual era o Bispo. Convoca-a para uma jornada de revisão,
reorganização e de novo empenho pastoral, diante das alteradas condições de uma
cidade que, no espaço de quarenta anos, multiplicara por quatro a sua
população, esparramando-se numa extensa periferia pastoralmente desassistida e
formada por migrantes pobres.
Roncalli que chegava de uma fecunda experiência pastoral como patriarca
de Veneza, já deixara patente esta nova faceta do seu pontificado: não deixaria
a diocese de Roma, como se tornara tradição, entregue aos cuidados exclusivos
do Cardeal Vigário, mas pretendia ele mesmo conhecer o seu rebanho e dele
cuidar, visitando pessoalmente as paróquias, prisões, hospitais e escolas da
cidade, cumprindo suas obrigações de bispo diocesano.
Com o Concílio, revelava sua solicitude pela Igreja universal, da qual
era o “pastor bonus”, o bom pastor.
Para ambas as situações, propunha remédios tradicionais na vida da
Igreja: um Sínodo e um Concílio.
As duas iniciativas supunham uma visão colegiada das responsabilidades
pastorais do Bispo e do Papa. Todo o corpo cristão, leigos e leigas,
sacerdotes, religiosos e religiosas, de diferentes maneiras, era chamado a
participar e a colaborar ativamente na vida da Igreja e na busca de soluções
para os problemas existentes.
Outra marca inovadora do Concílio convocado pelo Papa era o seu caráter
“pastoral”. Nenhuma grande divisão ou heresia ameaçava a Igreja, nem queria o
Papa condenar erros ou pessoas, mas sim buscar, pelo diálogo, remédios
pastorais para as aflições e indagações dos fiéis e da humanidade. Pode-se
compreender, neste sentido, sua decisão de não prosseguir com o Vaticano I, que
fora suspenso a 20 de setembro de 1870, pela tomada de Roma pelas tropas de
Garibaldi e nunca fora oficialmente encerrado, e de denominar Vaticano II, o
novo Concílio. Indicava, assim, continuidade, pelo uso do mesmo nome, e
descontinuidade no espírito e nos propósitos, pela numeração diferente.
Comparando os anteriores concílios com aquele que estava convocando,
João XXIII o via inserido na longa série dos anteriores 20 concílios
ecumênicos, mas com características e rosto muito próprios.
Dizia o Papa: “Os Concílios ecumênicos no passado responderam, sobretudo,
a preocupações de ordem doutrinária, [...] à medida que heresias e erros
tentavam penetrar a Igreja antiga, no Oriente e no Ocidente. [...] Na época
moderna, num mundo de fisionomia profundamente mudada [...], mais do que de tal
ou qual ponto de doutrina ou de disciplina que será preciso reconduzir às
fontes puras da Revelação e da Tradição, trata-se de repor em valor e em toda a
sua luz a substância do pensamento e da vida humana e cristã, de que a Igreja é
depositária e mestra pelos séculos”[3].
Esta sua intuição de um Concílio de renovação e atualização, de
propostas em vez de condenações, foi ficando cada vez mais clara e o Papa a
exprimiu solenemente na abertura do mesmo a 11 de outubro de 1962, dizendo que
se tratava “[...] da renovada, serena e tranqüila adesão a todo o ensino da
Igreja, na sua integridade e exatidão, como brilha nos Atos Conciliares desde
Trento até ao Vaticano I. O espírito cristão, católico e apostólico do mundo
inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das
consciências, em correspondência mais perfeita com a fidelidade à doutrina
autêntica, mas também que esta seja estudada e exposta por meio de formas de
indagação e formulação do pensamento moderno. Uma é a substância da antiga
doutrina do depositum fidei e outra é a formulação que a reveste; e é
disto que se deve – com paciência, se necessário – ter em grande conta, medindo
tudo nas formas e proporções do magistério de caráter prevalentemente pastoral”[4].
João XXIII tirava, em seguida, as conseqüências de um Concílio que
queria ser primordialmente pastoral, até mesmo na maneira de tratar os erros
modernos, com misericórdia, bondade e paciência:
“A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou
com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a esposa de Cristo prefere usar
mais o remédio da misericórdia que o da severidade; julga satisfazer melhor às
necessidades de hoje mostrando a validez de sua doutrina que condenando erros.
[...] Sendo assim, a Igreja católica, levantando por meio deste Concílio
Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos,
benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos dela
separados. Ao gênero humano oprimido por tantas dificuldades, ela diz, como
outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: ‘Eu não tenho nem ouro nem prata;
mas dou-te aquilo que tenho: em nome do Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e
anda’(At 3, 6)”[5].
Até chegar ao discurso de abertura do Concílio, pronunciado na Basílica
de São Pedro diante de 2.540 padres conciliares, dos observadores das demais
Igrejas Cristãs e dos outros hóspedes do Secretariado para a União dos
Cristãos, de delegações oficiais dos Estados e Organizações Internacionais, um
intenso e trepidante caminho fora percorrido, em preparação ao grande evento.
É este caminho que queremos rememorar em breves pinceladas.
3.
DO ANÚNCIO À COMISSÃO ANTE-PREPARATÓRIA
Passados o entusiasmo inicial, as perplexidades e especulações, que se
seguiram ao anúncio do Concílio, ninguém sabia quais seriam os passos
seguintes, tanto mais que as energias em Roma estavam voltadas para a
preparação e realização do Sínodo diocesano que, de resto, não alcançou grandes
resultados.
Só o Papa, em suas alocações e discursos, continuava a manter viva a
proposta do Concílio.
As coisas mudaram, porém, com a alocução de João XXIII, na festa de
Pentecostes de 1959 e a constituição, neste mesmo dia, 17 de maio, da Comissão
Ante-preparatória, sob a direção do Cardeal Secretário de Estado, Domenico
Tardini[6]. A
Comissão foi encarregada de consultar o episcopado católico em todas as nações
do mundo, recolhendo seus conselhos e sugestões para o Concílio. Devia fazer o
mesmo com os dicastérios da Cúria Romana, com as Faculdades de Teologia e
Direito Canônico, com as Universidades Católicas e com os Superiores Maiores
das Ordens e Congregações Religiosas. Deveria, enfim, sugerir a composição dos
diversos organismos do Concílio: comissões, secretariados etc. que iriam
assumir a preparação do evento conciliar[7].
4.
A CONSULTA E AS RESPOSTAS DO EPISCOPADO BRASILEIRO
A comissão preparou um longo e minucioso questionário sobre o estado da
Igreja Católica a ser submetido aos bispos, em vistas ao Concílio. João XXIII
não gostou, pois o questionário parecia direcionar previamente o rumo das
respostas. Preferiu, então, uma carta simples e enxuta, enviada pelo Cardeal
Tardini, em que convidava os bispos, para, com toda liberdade, exprimirem seus
anseios e sugestões:
“O augusto Pontífice, em primeiro lugar, deseja conhecer opiniões e
pareceres e recolher conselhos e vota dos ex.mos bispos e prelados que
são chamados de direito a participar do Concílio Ecumênico (cân. 223): de fato
sua Santidade atribui a maior importância aos pareceres, conselhos e vota
dos futuros Padres conciliares; o que será muito útil na preparação dos temas
para o Concílio.
Peço, portanto, vivamente a V. Excia que queira fazer chegar a essa
Comissão Pontifícia com absoluta liberdade e sinceridade, pareceres, conselhos
e vota que a solicitude pastoral e o zelo das almas possam sugerir a V.
Excia em ordem às matérias e aos temas que poderão ser discutidos no próximo
Concílio. Esses temas poderão dizer respeito a alguns pontos de doutrina,
disciplina do clero e do povo cristão, a múltipla atividade que empenha toda a
Igreja, os problemas de maior importância que essa deve enfrentar hoje, e toda
outra coisa que V. Ex.cia julgar oportuno apresentar e desenvolver”[8].
João XXIII falando aos Cardeais em 30 de maio de 1960, assim descreveu
o resultado da consulta:
“As respostas, depois de algum tempo, começaram a afluir com ritmo
sempre crescente, e chegou-se a percentagens altíssimas, que em alguns casos
atingem a quase totalidade dos interpelados. Até agora, contam-se com mais de
2.000 respostas. Elas foram examinadas com muita diligência, e cuidadosamente
resumidas e fichadas segundo a matéria e o assunto.
[...] Após esta primeira análise procedeu-se à elaboração dos
Relatórios Sintéticos Nacionais. Para cada Nação, foram indicados os relativos
dados estatísticos, alguns relevos gerais, que lhes caracterizam a orientação,
e os assuntos de maior importância. Depois foi compilada uma Síntese final, que
salienta os assuntos sobre os quais se deteve em particular a atenção do
episcopado”[9].
Dos 167 bispos e prelados do Brasil que receberam a carta de consulta, 132,
pessoal ou coletivamente, responderam-na, ou seja, 79% do conjunto[10],
uma média um pouco mais alta do que a mundial, em que dos 2812 consultados,
2150 responderam (76,4%)[11].
As respostas dos bispos brasileiros ocupam 216 páginas do volume II, Pars
VII, das Acta et Documenta, indo da página 127 à 343 do tomo VII.
Dentre as respostas brasileiras, merecem destaque pelo seu contraste, a
do secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, Dom
Helder Camara e a de Dom Geraldo Proença Sigaud, na época, bispo de
Jacarezinho, PR. Dom Sigaud, que depois foi nomeado arcebispo de Diamantina, MG
tornou-se, no Concílio, secretário do Coetus Internationalis Patrum,
organismo que reuniu os bispos mais conservadores que fizeram parte da que
ficou conhecida como “minoria conciliar”. Sigaud fez uma longa lista dos erros
modernos, no campo doutrinal ou sócio-político, pedindo veementemente a sua
condenação e a repressão nos seminários, universidades e editoras católicas
daqueles que eram suspeitos de propagá-los.
Dom Helder, por seu lado, expressou o desejo de uma grande renovação da
Igreja Católica em que esta se voltasse para os mais pobres e se empenhasse ao
lado deles na luta contra a pobreza e o sub-desenvolvimento, ao mesmo tempo em
que pedia que a Igreja se abrisse ao diálogo com o mundo moderno, em todos os
campos, da técnica à ciência, das artes à literatura.
Os bispos, em sua maioria, pouco acostumados a serem consultados por
Roma, limitaram-se a desejar bom êxito ao Concílio ou a solicitar pequenas
mudanças no Código de Direito Canônico, na Liturgia ou na disciplina
eclesiástica. Não faltaram, entretanto, os que pediam a língua vulgar nas
celebrações, maior atenção aos pobres e empenho da Igreja no campo social[12].
5.
UMA NOVA ETAPA: A FASE PREPARATÓRIA
João XXIII noticiou, a 05 de junho de 1960, o encerramento dos
trabalhos da fase ante-preparatória e com o Motu
Proprio Superno Dei Nutu deu
início à fase preparatória, criando as comissões e os secretariados que deviam
se ocupar da preparação imediata do Concílio[13]:
Comissão Teológica, Comissão dos Bispos e governo das dioceses; Comissão para a
disciplina do clero e do povo cristão; Comissão dos Religiosos; Comissão da
disciplina dos Sacramentos; Comissão da Sagrada Liturgia; Comissão dos Estudos
e dos Seminários; Comissão da Igreja Oriental; Comissão das Missões; Comissão
do Apostolado dos leigos”[14].
Dentre os Secretariados, um ficou encarregado dos meios de comunicação social,
outro das questões econômicas e um terceiro do diálogo com as comunidades e
igrejas cristãs separadas da comunhão católica romana.
Foi instituída ainda uma Comissão Central, presidida pelo Papa e, na
sua ausência, pelo Secretário de Estado e integrada pelos presidentes das
demais comissões, alguns outros Cardeais e também alguns Bispos das diversas
partes do mundo. À esta Comissão competia coordenar todos os trabalhos,
estabelecer a agenda dos assuntos a serem tratados no Concílio e estabelecer as
normas e regulamentos para o seu funcionamento.
O modelo adotado trouxe suas vantagens, mas provocou também alguns
problemas. O ganho principal foi conseguir que a Cúria romana, até então
arredia, se envolvesse na preparação conciliar, pois aos Cardeais Prefeitos dos
diferentes dicastérios foi confiada a presidência de cada uma das dez Comissões
que correspondiam, simetricamente, quanto à temática, a estes mesmos
organismos. A Comissão Teológica por exemplo ficou em mãos do Santo Ofício e
era dirigida pelo todo poderoso e temido Cardeal Alfredo Ottaviani. Esta
decisão condicionou todo o trabalho preparatório que ficou quase que por
inteiro sob controle da Cúria Romana.
6.
FRUTOS E PERCALÇOS NA PREPARAÇÃO
As comissões trabalharam arduamente nos meses seguintes à sua formação,
debruçando-se sobre a ingente matéria recolhida em todo o mundo e organizada em
quinze grandes tomos. Devagar, começaram a tomar forma as propostas de esquemas
a serem submetidos à Comissão Central e depois ao Concílio.
As Comissões operavam, entretanto, em compartimentos estanques, umas não
tendo notícia sobre o que as outras preparavam e proibidas de intercambiar
entre si os textos que iam elaborando. Este tipo de procedimento, que priorizou
o segredo e o isolamento entre as comissões, conduziu a resultados paradoxais.
Em que pese o trabalho da Comissão Central, encarregada de tudo coordenar,
examinar e aprovar, esta não conseguiu impedir a desarticulação do trabalho
preparatório, problema logo detectado na Aula conciliar.
A primeira conseqüência foi a superposição de esquemas que tocavam o
mesmo tema, acarretando incongruências e perda de tempo.
Basta um único exemplo para ilustrar a dificuldade. Sobre o tema da
unidade da Igreja, ou seja, do ecumenismo, a Comissão Teológica preparou um
estudo que constituía o capítulo XI do esquema sobre a Igreja[15];
a Comissão das Igrejas Orientais, um segundo[16],
voltado exclusivamente para as relações entre a Igreja católica e as Igrejas
orientais não em plena comunhão com a Sé Romana e, finalmente, o Secretariado
para a União dos Cristãos redigiu um terceiro esquema, em que eram enunciados
os princípios gerais do ecumenismo e se tratava mais das relações com as
Igrejas saídas da Reforma e com o Anglicanismo[17].
Ao ser colocado em discussão na Aula Conciliar, na XXVIII Congregação Geral (27-11-1962)[18],
o esquema sobre a Unidade da Igreja preparado pela Comissão das Igrejas
Orientais, a Assembléia logo decidiu, por 2061 votos favoráveis, 36 contrários
e 8 nulos, que os três esquemas fossem fundidos num só, por meio de uma
comissão mista tripartite (Comissão Teológica, Secretariado para a Unidade dos
Cristãos, Comissão das Igrejas Orientais) sob a coordenação do Secretariado
para a União dos Cristãos, criado exatamente com a finalidade precípua de
ocupar-se do diálogo ecumênico[19].
A questão, entretanto, era muito mais geral e profunda. Houve uma
dissociação entre o Concílio sonhado por João XXIII e os esquemas elaborados
pelas Comissões sob a supervisão da Cúria; um desencontro entre o sentir dos
bispos, envolvidos no dia a dia da pastoral, e certa auto-suficiência dos
funcionários encarregados da administração central da Igreja. Isso transpareceu
na Assembléia conciliar que rejeitou a continuidade das comissões
pré-conciliares, elegendo novos membros para todas elas, saídos de uma ampla
consulta entre os episcopados nos primeiros dias do Concílio. Refletiu-se
também na atitude frente aos esquemas previamente preparados. Salvo o esquema da Liturgia, o primeiro a ser
discutido na Aula conciliar, todos os outros 70 esquemas ou foram rejeitados
pela Assembléia e despachados para serem refeitos, ou soçobraram na devastadora
reorganização da matéria conciliar cumprida pela Comissão de Coordenação criada
ao final da I Sessão[20]
e, depois, pelo Plano Döpfner, na II Intersessão[21].
Tudo acabou sendo reduzido e, finalmente, reagrupado em 17 esquemas que
resultaram nos 16 documentos finais do Vaticano II, depois que um dos esquemas,
o De Beata Maria Virgine, tornou-se o
capítulo oitavo do De Ecclesia. O
décimo sétimo acolheu diferentes esquemas relativos à ordem econômica e social
e às novas demandas que vinham do Terceiro Mundo e de setores sensíveis do
episcopado europeu, tornando-se o laboratório para as muitas redações do
esquema XIII que desembocou na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de
Hoje, a Gaudium et Spes.
Outro problema que afetou as comissões foi o da sua composição. Num
primeiro relance, tem-se a impressão de que o desejo de João XXIII de que o
conjunto da Igreja Católica, - geográfica, cultural e teologicamente, na
diversidade de suas escolas e tendências - estivesse envolvido na preparação,
fora cumprido. Na realidade, porém, isto não aconteceu de todo. Não se pode
negar a grande diversidade geográfica e canônica dos 846 integrantes dos
organismos preparatórios, divididos entre membros (466) e consultores (380).
Geograficamente, repartindo-se estas pessoas por local de trabalho, o
resultado é o seguinte:
Continente Número
Porcentagem
Europa: 636
75.17%
Estados Unidos: 52 + Canadá: 22 =
74
8.75%
América Latina: 52 6.15%
Ásia: 52 6.15%
África: 21 2.48%
Oceania: 11 1.30%
TOTAL : 846
100.00%
O quadro não deixa dúvidas quanto ao peso excepcional dos europeus no
processo de preparação. Ocupam ¾ das posições, ficando os 25% restantes para os
demais continentes. Dentro da Europa, a Cidade do Vaticano (319) e a Itália
(72) somados (391) perfazem 61% dos
integrantes das comissões. Certos países europeus ganharam uma representação
importante em relação aos países dos outros continentes: França (62); Alemanha
(50); Espanha (33); Bélgica (18); Grã-Bretanha (16), Holanda e Áustria, 11 cada
um. É minguada a representação latino-americana e muito mais ainda a africana e
a da Oceania. A Ásia, com quatro vezes menos o número de católicos em relação à
América Latina, igualava a sua representação.
- MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, LAICATO E MULHERES
Um problema que continuou atormentando o próprio Concílio, em que pese
a sensível melhoria conseguida à força de muitos protestos da imprensa mundial,
foi o manto de estrito segredo que envolveu a preparação conciliar.
O segredo fez com que a opinião pública, e mesmo o episcopado mundial,
ficassem à margem do processo. Enviados os seus vota, os bispos esperaram, em vão, algum tipo de retorno acerca dos
resultados. Nunca chegaram à saber quais foram as grandes questões, tendências
e interrogações que esta ampla sondagem havia revelado, pois todas as respostas
dos bispos, dicastérios e universidades permaneceram debaixo de estrito segredo
pontifício durante toda a etapa preparatória e mesmo na fase conciliar.
O Papa reconheceu a tensão existente entre segredo e necessidade de
divulgação em discurso à Comissão Central. Referindo-se aos jornalistas,
observava:
“Não queremos esquecer os jornalistas que manifestaram sempre com tanta
correção, embora às vezes com um pouco de impaciência, um vivo desejo de serem
informados sobre os trabalhos do Concílio”[22].
Agradece seu interesse e colaboração, mas diz que o Concílio não é uma
Academia ou um Parlamento, e conclui, dando razão ao segredo vigente: “É claro
que tudo isto suscita o seu interesse, mas exige também especial respeito e
reserva”[23].
Outro senão que salta à vista é o restritíssimo número de leigos presentes
entre os membros e consultores: “Sete leigos serviam no secretariado
administrativo, mas em todas as Comissões Preparatórias que prepararam textos
para o concílio havia apenas um leigo, F. Vito, que servia na ST [Comissão de
Estudos e Seminários]. De fato, apesar dos esforços de seu presidente e
secretário, nenhum leigo foi nomeado sequer para a AL (Apostolado dos Leigos),
a comissão criada para discutir seu apostolado[24].
Nem é preciso dizer que nenhuma mulher, religiosa ou leiga católica,
prestou serviços em qualquer uma das comissões preparatórias[25].
Esta gravíssima lacuna só será timidamente sanada durante o desenrolar do
Concílio com a criação, por Paulo VI, de uma nova categoria de membros do
Concílio, os “auditores”, ou seja, leigos que podiam acompanhar o Concílio como
“ouvintes”, sem poder interferir, a partir do Segundo Período Conciliar (1963).
Vale notar que um dos auditores nomeados para terceira e quarta sessões
conciliares foi o operário paulista da Moóca, Bartolo Perez, naquele momento,
presidente da Juventude Operária Católica (JOC) mundial.
No terceiro período (1964), foi criada a categoria das “auditrices”,
das ouvintes, por intermédio da qual se fez presente ao Concílio um pequeno
grupo de religiosas, superiores gerais de congregações religiosas femininas e
leigas, presidentes das Organizações Católicas Internacionais foram admitidas à
Aula Conciliar, na mesma categoria de “auditrices”! Só no quarto e último
período (1965), um casal do México, Luz e Pepe Icaza, presidentes latino-americanos
do Movimento Familiar Cristão, foi arrolado entre os auditores e auditrices
conciliares.
8.
PRESENÇA BRASILEIRA NA PREPARAÇÃO DO CONCÍLIO
Ao se recuperar a memória da participação brasileira nesta etapa
preparatória do Concílio, verifica-se que foi muito parca, reduzida a um
punhado de bispos e teólogos, que não chegam a cobrir as várias comissões e
secretariados.
Sobre as 846 pessoas - 466 membros e 380 consultores -, havia somente 10 brasileiros: 4 sobre 466, como membros (0.85%), e 6 sobre
380, como consultores (1.57%). No conjunto, a participação brasileira alcança
pouco mais do que 1% (1.18%). São estes os bispos e teólogos brasileiros
envolvidos como membros (4) e consultores
(6) das Comissões:
MEMBROS:
D. Jaime de
Barros Câmara, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, RJ, na Comissão Central e,
dentro desta, na Subcomissão do Regulamento;
D. Alfredo Vicente Scherer, arcebispo
de Porto Alegre, RS, na Comissão
Teológica;
D. Antônio Alves de Siqueira,
arcebispo auxiliar de São Paulo, SP, na
Comissão da Disciplina dos Sacramentos;
Mons. Joaquim Nabuco da Arquidiocese
do Rio de Janeiro, na Comissão Litúrgica;
CONSULTORES:
D. Helder Pessoa Camara, arcebispo
auxiliar do Rio de Janeiro, RJ, na
Comissão dos Bispos e do Governo das Dioceses;
D. Geraldo Fernandes Bijos, bispo de
Londrina, PR, na Comissão dos Bispos e do Governo das Dioceses;
D. Afonso M. Ungarelli, prelado nullius de Pinheiro, MA, na Comissão da Disciplina dos
Sacramentos;
Frei Boaventura Kloppenburg O.F.M.,
na Comissão Teológica;
Pe. Estevão Bentia[26],
na Comissão das Igrejas Orientais.
D. José Vicente Távora, bispo de
Aracaju, SE, no Secretariado da
Imprensa e do Espetáculo;
Não havia ninguém do Brasil nas
seguintes comissões: Religiosos, Estudos e Seminários; Missões; Apostolado dos leigos, Cerimonial e
nem no Secretariado para a União dos
Cristãos e no Secretariado Administrativo.
Frei Boaventura Kloppenburg foi assíduo às sessões de trabalho de sua
comissão, a Teológica, a mais sobrecarregada de todas, vindo amiúde a Roma e
hospedando-se, por vezes, no Colégio Pio Brasileiro. Deixou um registro acurado
sobre o funcionamento da Comissão Teológica e de sua participação numa das
subcomissões, assim como um dos poucos relatos existentes sobre a fase
preparatória, que foi publicado como primeiro volume de sua Crônica, em cinco
tomos, sobre o Concílio Vaticano II, editada pelas Vozes de Petrópolis.
A fase preparatória do Concílio encerrou-se com a sétima e última
sessão plenária da Comissão Central que aconteceu de 12 a 20 de junho de 1962.
Dos trabalhos preparatórios, resultaram 70 esquemas impressos em 119 opúsculos,
com um total de 2060 páginas.
Todo este material, anteriormente sob segredo pontifício, já se
encontra publicado e acessível ao público, por ordem de Paulo VI, dentro do conjunto
das Atas e Documentos preparatórios ao Concílio sob os cuidados do Arquivo do
Concílio Vaticano II, em Roma.
O todo compreende duas séries: a primeira consagrada à etapa
ante-preparatória que cobre os anos de 1959 e 1960: o volume I com as Atas de
João XXIII; o II, com os votos e conselhos dos Bispos em oito tomos; um
Apêndice ao volume II, com as sínteses por países e por temas, em dois tomos; o
III, com as propostas dos dicastérios da Cúria Romana; o IV com os estudos e
votos das Faculdades Eclesiásticas e Universidades Católicas, em dois tomos, um
relativo às Universidades sediadas em Roma, dividido em duas partes e o outro
às espalhadas pelo orbe católico; o V com os Índices, num total de 15 tomos. A
segunda série relativa à fase preparatória abrange os dois anos seguintes, de
junho de 1960 à abertura do Concílio a 11 de outubro de 1962: volume I, Atas de
João XXIII; II, Atas da Comissão Central
em 4 tomos; III, Atas das Comissões e Secretariados em dois tomos; IV, Atas das
Sub-comissões da Comissão Central em três diferentes tomos, num total de 9
tomos.
- O SECRETARIADO PARA A UNIÃO DOS CRISTÃOS: A GRANDE NOVIDADE
Uma iniciativa de João XXIII cristalizou os melhores propósitos e
sonhos do Concílio, o Secretariado para a União dos Cristãos[27],
criado a 5 de junho de 1960 e colocado sob a responsabilidade do Cardeal
Agostinho Bea[28], um
jesuíta alemão, internacionalmente respeitado pelos seus estudos exegéticos,
que fora reitor do Instituto Bíblico de Roma e confessor de Pio XII[29].
Estrutura de contatos e diálogo com as demais igrejas cristãs, logo nos
primeiros dias, o Secretariado precisou acolher a demanda de Jules Isaac, um
judeu francês, encaminhado pelo Papa ao
Cardeal Bea e acrescentar internamente uma seção voltada para o diálogo
católico-judaico[30]. O
Secretariado foi a porta de entrada para todos e todas que buscavam um espaço
de entendimento com a Igreja Católica e semente para a posterior criação por
Paulo VI de um Secretariado para as Religiões não-cristãs, hoje Pontifício
Conselho para o Diálogo Inter-religioso, e de outro, para os Não-Crentes, hoje,
Pontifício Conselho da Cultura.
Bea e o Secretariado estabeleceram imediato contato com o Conselho
Mundial de Igrejas e os responsáveis maiores das antigas Igrejas Orientais, das
Igrejas Ortodoxas, das Igrejas saídas da Reforma Protestante, do Anglicanismo e
dos Vetero-Católicos que, depois de intensas consultas, aceitaram o convite para comparecerem como
“observadores” ao Concílio. Por primeira vez, em 1961, delegados católicos
compareceram à III Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, reunida em
Nova Delhi na Índia, quebrando assim a reiterada recusa da Igreja Católica de
reunir-se com outras igrejas cristãs ao interior do moderno movimento ecumênico[31].
10. HOUVE UM HOMEM ENVIADO POR DEUS CUJO NOME ERA JOÃO!
Não é possível compreender a preparação e o próprio Concílio Vaticano
II, sem nos voltarmos para a figura de João XXIII. A todo momento, ele deixava
transparecer seu entusiasmo e otimismo, sua alegria e contentamento, saudando, por
vezes a iniciativa conciliar, com imagens que evocavam sua infância nos campos
de Soto il Monte. Não se cansava de comparar o Concílio à primavera e às suas
flores:
“A idéia do Concílio não amadureceu como fruto de prolongada
consideração, senão qual flor espontânea de inesperada primavera”[32].
Evocava também o Concílio como novo Pentecostes na vida da Igreja:
“De fato é na doutrina e no espírito de Pentecostes que o grande
acontecimento do Concílio Ecumênico haure substância e vida”.
Ao lado de uma quotidiana atenção ao Concílio, tema constante de suas
alocuções, audiências, escritos que somam 225 intervenções recolhidas e
publicadas para o período entre o início da fase preparatória (05-06-1960) e as
vésperas da abertura do evento conciliar (10-10-62)[33], consagra-lhe alguns momentos privilegiados,
no sentido de aprofundar e reafirmar sua intuição primeira e de orientar as
atividades preparatórias.
Sobressaem-se entre estes, a Alocução Ad Commissionum Praeparatoriarum Sodales et Consultores, na
inauguração dos trabalhos das Comissões Preparatórias, a 14 de novembro de 1960[34]; a Bula de indicção do Concílio, Humanae Salutis, no Natal de 1961[35];
a carta pessoal, Omnes sane de 15 de
abril de 1962 dirigida a todos os bispos convidados para o Concílio[36]; a Carta Apostólica, Oecumenicum Concilium, por ocasião da Páscoa de 1962[37];
a encíclica Poenitentiam agere,
dirigida, a 1º de julho de 1962, aos sacerdotes, seminaristas, religiosos e
religiosas, convidando-os à conversão e à oração em vistas do Concílio[38];
a Carta Apostólica “Appropinquante
Concilio”, de 06 de agosto de 1962, em que são estabelecidas as normas para
a celebração do Concílio, ou seja, o seu Regulamento[39];
a importantíssima Mensagem Radiofônica, a apenas um mês da abertura do
Concílio, a 11 de setembro de 1962[40].
Nesta mensagem, João XXIII, depois de relembrar sua recente encíclica Mater
et Magistra, aponta como ponto luminoso na caminhada recente da Igreja
Católica:
“Em face dos países subdesenvolvidos, a Igreja apresenta-se – tal qual
é e quer ser – como a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”[41].
Antecipa assim, um dos eixos em torno do qual os povos da África, Ásia
e América Latina se sentirão tocados pelo Concílio e quase antevê todo o
movimento que se criou em torno da “Igreja dos Pobres”.
Diante deste pessoal e vigilante empenho do Papa, em favor da boa
preparação do Concílio, o historiador Giuseppe Alberigo comenta:
“Enfim no Natal de 1961, foi publicada a Constituição Apostólica que
convocou o Concílio Vaticano II, para o ano seguinte, 1962. Nela, João XXIII
tomava as devidas distâncias das ‘almas desconfiadas, que não vêem outra coisa
sobre a face da terra a não ser sombras [...]. Aliás, tornando nossa a
recomendação de Jesus de saber distinguir os ‘sinais dos tempos’(Mt 16,4), parece-nos
entrever, em meio a tantas sombras, não poucos indícios que nos tornam
esperançosos acerca do destino da Igreja e da humanidade’. Nesta perspectiva,
‘acolhendo como vinda do alto uma voz íntima do nosso espírito’, ele havia
considerado maduros os tempos ‘para oferecer à Igreja católica e ao mundo o dom
de um novo Concílio’”[42].
“Especificamente sobre a dimensão ecumênica do Concílio, o Papa
continuava a deixar mais do que patente o seu apaixonado interesse pelo tema,
não só mediante as muitas referências que fazia em seus discursos e por meio da
criação de um secretariado específico para tratar do assunto, mas também
autorizando o referido secretariado a ir além da explícita formulação da Superno Dei Nutu e a preparar textos
sobre os temas centrais do ecumenismo. Todavia, ele parece não ter respondido
com muita eficácia, quando foram expressas críticas sobre sua falta de
sensibilidade ecumênica durante os trabalhos preparatórios”[43].
Permanecia um ponto particularmente espinhoso: o daqueles que, na burocracia
interna do Vaticano, nas comissões preparatórias e nas universidades romanas
opunham-se à linha de abertura e diálogo inaugurada pelo Papa. Às vésperas do
Concílio, multiplicaram-se indícios de que este grupo não cederia espaço para a
nova orientação. Encaixam-se aí a Constituição Apostólica Veterum Sapientiae de 22 de fevereiro de 1962, que reiterava a
obrigação do latim não só na liturgia, mas também nos estudos eclesiásticos,
além do próprio Concílio; o Monitum do
Santo Ofício contra as obras de Teilhard de Chardin, publicado no início de
julho de 1962.
“Esse ato foi interpretado como hostil a muitos teólogos – a começar
por Henri de Lubac -, que sempre defenderam a ortodoxia desse sacerdote
francês. O Santo Ofício, por sua vez, reafirmava a sua ‘suprema’ autoridade e,
conseqüentemente, era atingida a confiança do episcopado nos propósitos
renovadores do Papa.
[...] O Papa desejava que os vários órgãos da Santa Sé se empenhassem
em preparar o Concílio, conformando-se à orientação por ele sugerida. Ao invés
disso, a Comissão Bíblica, presidida pelo Cardeal Tisserant, estava apoiando
atos desfavoráveis a exegetas equilibrados e abertos, trazendo discordâncias
para dentro de um dos movimentos mais ricos da Igreja, o Movimento Bíblico,
chamado a dar uma contribuição de primeiro plano à renovação conciliar. João
XXIII, em vista disso, encontra-se na obrigação de fazer uma intervenção
severa, documentada em uma carta ao secretário de Estado, datada de 21 de maio
de 1962.
Essa carta chegava a levantar a hipótese de se dissolver a comissão:
“Ou a Comissão Bíblica se move, trabalha e dá frutos, sugerindo ao
Santo Padre iniciativas consentâneas às exigências do momento atual, ou então
ela será dissolvida, cabendo à autoridade superior providenciar in Domino a sua reconstituição. De
qualquer forma, é preciso absolutamente acabar com a impressão de incerteza
aqui e ali, a qual não honra ninguém, e de temor quanto a posições claras que é
preciso tomar em face de certas idéias de pessoas ou de escolas [...]; seria
motivo de grande consolação, se fosse possível, mediante a preparação do
Concílio Ecumênico, chegar a uma Comissão Bíblica de tal ressonância e
dignidade que se torne um ponto de referência e de respeito para todos os
nossos irmãos separados, os quais, ao abandonarem a Igreja católica,
refugiaram-se em busca de proteção e salvação sob as sombras do Livro Sagrado,
lido e interpretado de várias maneiras”[44].
No mesmo dia de sua Radio
Mensagem de 11 de setembro de 1962, João XXIII abria sua alma, no seu Diário íntimo, meditando sobre o
caminho percorrido nos pouco mais de três anos de pontificado. Ele faz um
resumo das graças recebidas: “primeira graça: o ter aceito com simplicidade a
honra e o peso do pontificado, com a alegria de poder dizer que nada fiz para
provocá-lo [...]; segunda graça: fazer com que me pareçam simples e de imediata
execução algumas idéias para nada complexas, aliás, simplicíssimas, mas de
grande alcance e de responsabilidade perante o futuro, e que tiveram imediato
sucesso. São admiráveis estas expressões da Bíblia: Acolher as boas inspirações
do Senhor, com simplicidade e confiança! (Prov. 10.9)”[45].
Passa então à evocação de como lhe veio a inspiração do Concílio e, com
esta citação, na linguagem simples e direta de João XXIII, encerramos esse
artigo sobre a fase preparatória do Vaticano II:
“Sem ter pensado antes, num primeiro colóquio com o meu Secretário de
Estado, a 20 de janeiro de 1959, adiantei a palavra de Concílio Ecumênico, de
Sínodo Diocesano e de reforma do Código de Direito Canônico, sem nunca ter
pensado nisto e contrariamente a qualquer suposição ou imaginação minha sobre
este ponto.
O primeiro a ficar surpreso com esta minha proposta, sem que nunca
alguém a tivesse sugerido, fui eu mesmo.
E dizer que depois tudo me pareceu tão natural no seu imediato e
contínuo desdobrar-se.
Depois de três anos de
preparação, por certo laboriosa, mas também feliz e tranqüila, eis-nos, agora,
ao sopé da santa montanha” [46].
Pe. José Oscar Beozzo
São Paulo, 06-02-2012
[1]
OR, 26-27 jan. 1959, p. 1
[2]
KLOPPENBURG, Boaventura, Concílio Vaticano II. Vol. I: Documentário
preconciliar. Petrópolis: Vozes, 1962,
38 (Abreviaremos daqui para frente estas citações como KLOP, seguido de
números romanos para os diferentes volumes).
[3]
JOÃO XXIII, Discurso aos membros das Comissões Preparatórias do Concílio.
Roma, 14-11-1960, Ibidem, 62-63.
[4]
JOÃO XXIII, Gaudet Mater Ecclesia – Discurso de Abertura do Concílio
Vaticano II. 11-10-1962, in KLOP II: Primeira Sessão (set.- out. 1962).
Petrópolis: Vozes, 1963, 310.
[5]
Ibidem, 310.
[6]
JOÃO XXIII, Allocutio Diei Pentecostes Anno MCMLIX. Doc. XVI in Acta Summi Pontificis Johannis XXIII,
in Acta et Documenta Concilio Oecumenico Vaticano II Apparando. Series I
(Antepraeparatoria). Vol I, Romae, Typys Polyglottis Vaticanis, 1959, 24-26.
[7] Constitutio Commissionis
Antepraeparatoriae, Doc. XV, ibidem, pp. 22-23.
[8] ALBERIGO, Giuseppe, História do
Concílio Vaticano II. Tomo I.
Petrópolis: Vozes, 1995, 103-104.
Original em ADA I/II, 1, X-XI.
[9]
KLOP. I, 50.
[10] ADA II/Indices, 377. Nestes
números oficiais das Acta et Documenta, não está incluído Dom Ignácio
Krause, trabalhando no Paraná, mas arrolado como bispo da China.
[11] ADA I/Indices, 209
[12]
Os “votos” dos bispos brasileiros foram detalhadamente analisados por BARAÚNA,
Luiz, “Brasil”, in BEOZZO, José Oscar (org.), A Igreja Latino-americana às
vésperas do Concílio – História do Concílio Ecumênico Vaticano II. São
Paulo: Paulinas, 1993, pp. 146-177.
[13] JOÃO XXIII, Superno Dei Nutu. Roma, 05-06-1960. ADA I/1; tradução portuguesa:
KLOP I, pp. 54-57
[14] Superno Dei Nutu, n º 7, KLOP I, 56.
[15] Schemata Constitutionum et
Decretorum de quibus disceptabitur in Concilii Sessionibus. Series II: De Ecclesia et de B. Maria Virgine. Rome:
Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLXII, 80-90
[16] Schema decreti “De Ecclesiae unitate “Ut omnes unum sint” propositum
a Commissione de Eclesiis Orientalibus. Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLXII,
28
[17] Decretum “De oecumenismo catholico” (Decretum pastorale). Typis Polyglottis
Vaticanis, MCMLXII, 16
[18] O processo verbal desta
Congregação encontra-se na AS I/1, 140; KLOP I, 212 ss.; CAPRILE II,
215-226
[19] “Concluído o exame acerca do
decreto sobre a unidade da Igreja, os Padres do Sacro Concílio o aprovam como
documento no qual estão recolhidas as verdades comuns da fé e como um sinal de
lembrança e benevolência em relação aos irmãos separados do Oriente. Este
decreto, entretanto, com base nas observações e propostas ouvidas na aula
conciliar, formará um único documento com o decreto sobre o Ecumenismo
preparado pelo Secretariado para a União dos Cristãos e com o capítulo XI,
sempre sobre o ecumenismo, do esquema de Constituição dogmática sobre a Igreja.
CAPRILE, Giovanni, Il Concilio
Vaticano II – Il primo período (1962-1963), Vol. II, Roma, Civiltà Cattolica, 1965, 226 (tradução do
autor)
[20] Essa espécie de super-comissão
foi anunciada na Aula Conciliar a 6 de dezembro de 1962 e estava regida pelas
instruções da Ordo agendorum tempore quod
inter conclusionem primae periodi concilii oecumenici et initium secundae intercedit.
AS V/1, pp. 33-35. Vejam-se também as cartas do Cardeal Cicognani, presidente
da Comissão, ao Secretário Geral do Concílio Pericle Felici, a primeira de
14-12-1962, com a lista dos membros da Comissão (AS V/1, p. 36) nomeados por
João XXIII e a segunda de 21.08.1963, com os nomes dos que Paulo VI acrescentou à mesma (AS V/1, p. 37).
Sobre o papel desempenhado pela Comissão, cfr. GROOTAERS, Jan, “VIII. Decide-se
a sorte do Concílio na Intersessão. ‘A segunda preparação e seus adversários’”,
in ALBERIGO, História II, pp.
325-442.
[21]
VILANOVA, Evangelista , “L’intersessione (1963-1964): 1. Prima fase: il lavoro
conciliare a partire dal ‘piano Döpfner’, pp. 372-435; 2. Seconda fase: il
‘piano Döpfner’ e l’iniziativa di Paolo VI, pp. 436-456; 3. Ultima fase:
tramonto del ‘piano Döpfner’, pp. 457-477”, in ALBERIGO, Storia III, pp. 367-477. Sobre
a figura conciliar do moderador Döpfner e sobre seu plano de reestruturação
radical dos trabalhos conciliares, cfr. Wittstadt,
K., Julius Kardinal Döpfner und das
Zweite Vatikanische Konzil. Zum
zehnten Jahrestag seines Todes am 24. Juli 1986, Würzburg
1986, pp. 5-34; „Julius Kardinal Döpfner. Eine bedeutende Persönlichkeit eines
Konzilsvaters“, in WITTSTADT, Karl und W. VERSCHOOTEN (Hrsg.), Der Beitrag der Deutschsprachigen und
Osteuropäischen Länder zum Zweiten Vatikanischen Konzil. Leuven: Bibliotheek van de
Faculteit Godgellerdheid, 1996, pp. 45-66
[22] João
XXIII, Discurso à Comissão Central. Roma, 20 de junho de 1961, in KLOPP I, 75.
[23] Ibidem,
75.
[24] Muitas das associações nacionais
e internacionais de leigos, porém, apresentaram seus vota e foram representadas na AL por sacerdotes há muito tempo
associados a seu trabalho. TURBANTI, Giovanni. “I laici nella chiesa e nel mondo”,
in Verso Il Concilio Vaticano II, 212-18
[25] KOMONCHAK, J. “A Luta pelo
concílio durante a preparação”, in ALBERIGO, História, I, p. 181
[26] Pe. Estevam Bentia era professor
da Faculdade de Teologia N.S.da Assunção, em São Paulo, à época da preparação
do Concílio.
[27] Hoje, o
Secretariado chama-se Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos
Cristãos.
[28] Schmidt,
S., Agostino Bea, il cardinale dell'unità,
Roma, 1987.
[29] Veja-se do próprio cardeal,
o livro: BEA, Agostino, A União dos
Cristãos., Petrópolis: Vozes, 1964.
[30] BEA, Agostino, La Chiesa e il Popolo Ebraico, Brescia, 1966.
[31] Sobre a transição ecumênica
da Igreja Católica, veja-se a importante contribuição de Velati: Velati, Una difficile transizione. Il cattolicesimo tra unionismo e
ecumenismo (1952-1964). Bologna: Il
Mulino, 1996
[32] JOÃO
XXXIII, Alocução aos dirigentes da Ação Católica: Concílio e União.
Roma, 09 de agosto de 1959, in KLOPP I, 39.
[34] JOÃO XXIII, Ad Commissionem Praeparatoriarum Sodales et Consultores (14 nov.
1960). ADP II/1, 32-41. Tradução portuguesa: KLOP I, 61-67
[35] JOÃO XXIII, Constitutio Apostolica “Humanae Salutis (25 dec. 1961). ADP II/1,
132-143. Tradução portuguesa: KLOP I, 83-88
[36] JOÃO XXIII, Ad Ecclesiae
Episcopos Epistula, ADP II/1, 213-2”18. Tradução portuguesa: KLOP II, 287-291
[37] JOÃO XXIII, Epistula Apostolica “Oecumenicum Concilium” (28 apr. 1962). ADP
II/1, 224-229. Tradução portuguesa: KLOP I, 99-102
[38] JOÃO XXIII, Litterae Encyclicae “Poenitentiam agere” (1 jul. 1962). ADP II/1,
275-283. Tradução portuguesa: KLOP II, 292-298.
[39] JOÃO XXIII, Litterae Apostolicae “Appropinquante Concilio” (6 aug. 1962), ADP
II/1, 306-325, Tradução portuguesa: KLOP II, 271-286
[40] JOÃO XXIII, Nuntius Radiophonicus (11 sept. 1962). ADP II/1, 348-354. Tradução
portuguesa: KLOP II, 299-305
[41] Ibidem,
301.
[42] ALBERIGO, Giuseppe, Angelo José Roncalli, João XXIII. São
Paulo: Paulinas, 2000, 195
[43] ibidem, 198
[44] Ibidem, 206-207
[45]
Ibidem, 210-211
[46]
RONCALLI, Angelo Giuseppe/Giovanni XXIII, Il
Giornale dell’Anima. Diari e scritti spirituali. Edizione critica ed
annotazione a cura di Alberto Melloni. Bologna:
ISR, 1987, 763-764. Tradução do autor.
Assinar:
Postagens (Atom)